quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Introdução

O Nascimento de Vênus, de Sandro Botticelli (pintado entre 1484 e 1486)

Bem-vindo ao blog O Amor no Renascimento! Esta página foi desenvolvida no segundo semestre de 2016, como parte das atividades relacionadas à disciplina Literatura do Renascimento, ministrada pela professora Luciana Villas Bôas na Faculdade de Letras da UFRJ. Nesta página, você encontrará uma seleção de textos e imagens que versam sobre a forma como o amor era compreendido e tematizado no Renascimento, período que se espraia do século XIV ao XVII.
Analisaremos o amor segundo o viés renascentista. Esta é a época de ruptura do chamado amor cortês - do amor escondido, o rapaz corteja a moça e estes, com grande possibilidade de serem casados - vivem o romance às escondidas dos olhos do mundo. O amor construído pelo renascentismo é puro, romântico. A mulher é uma figura inalcançável, cuja beleze estonteante eleva o feminino à categoria de anjo. 

Neste blog, estão disponíveis os seguintes recursos:
1) O texto "A maneira petrarquista" resume as principais ideias do teórico Leonard Forster a respeito da poesia amorosa de Petrarca, de grande influência na Renascença;
2) Em "O amor renascentista e sua representação na pintura", discutimos as formas como o amor é construído em algumas pinturas da época;
3) Você encontrará análises específicas de sonetos de Petrarca aqui e aqui, assim como um post dedicado à análise de poemas amorosos do poeta renascentista Sir Thomas Wyatt;
4) Por fim, discutimos o entrelaçamento entre amor e política, à época do Renascimento, no texto "O petrarquismo e a Rainha Virgem".

Todas as páginas contêm indicações de referências bibliográficas adicionais relacionas à temática particular de cada post. Além disso, abaixo do banner central do blog, você encontrará links para páginas que tematizam outros aspectos do Renascimento: a fé, a soberania, a côrte, os conceitos filosóficos centrais. Não obstante, disponibilizamos, a seguir, um banco de recursos extras, que podem facilitar a pesquisa sobre o Renascimento de forma geral:


Faça bom proveito!


terça-feira, 20 de dezembro de 2016

O petrarquismo e a Rainha Virgem

O petrarquismo e a Rainha Virgem

Leonard Forster (1969) argumenta que o chamado petrarquismo fora parafraseado para propósitos políticos, de forma semelhante à de certas adaptações de passagens bíblicas conhecidas, como o Sermão da Montanha (mencionado brilhantemente por Martin Luther King Jr. em seu último discurso[1]) e Os 10 mandamentos. O autor cita, ainda, como exemplo deste fenômeno, o poema de Wyatt intitulado Pace non trovo ou I Find No Peace, em tradução de T. G. Bergan[2], cujas vozes dos versos evocam figuras importantes da conjuntura político-francesa do século XVI. O público-alvo de tal obra era composto por indivíduos europeus formalmente educados.
            Ademais, Forster (1969) destaca que, como bem pontua Gian Giorgio Trissino, a representação em pinturas de Elizabeth I era semelhante à descrição de Laura, a mulher ideal do eu-lírico de Petrarca (presente em Canzoniere[3]). Destacam-se, nas referidas retraturas, a pele alva da monarca, bem como sua beleza estonteante (nos poemas, concomitantes à sua capacidade intelectual), como na pintura abaixo, datada de 1592.[4] “Como a Rainha Virgem, adorada, mas por definição fora do alcance do admirador comum, ela era a incorporação do ícone literário.” (FORSTER, 1969: 127- tradução autoral)


            No retrato “Ermine”, por sua vez, de autoria de Nicholas Hilliard[5],  o animal presente no pulso da rainha consiste em uma representação da castidade. As jóias, em contrapartida, dialogam com o soneto petrarquiano [263], visto que indicam, ao mesmo tempo, o poder da realeza e a figura de Elizabeth transcendendo-o em esplendor e importância.

           
             
               Forster (1969) também pontua a perspicácia de Elizabeth I ao lançar mão do petrarquismo para transformar as desventuras que o destino lhe reservara em um reinado imerso em glória, admiração e lealdade. A rainha, nas palavras de Sir John Neale - cuja caracterização ecoa a imagem petrarquiana “semplicetta farfalla” disposta no soneto [141] - atrai para si profunda devoção de sua corte. Portanto, tal qual a mariposa deixa a luz da vela para perseguir o brilho dos da dama, Elizabeth era perseguida pelo amor/ devoção a ela prestado.
            Em tempo, Elizabeth é descrita como um modelo de castidade -vide o retrato intitulado “Sieve” (1579)[6] a seguir- ao mesmo tempo que figurada como um item de desejo e devoção pública amplamente fomentados  pelos muitos versos em ode à sua beleza e poder. Além disso, a dimensão alcançada pela pura devoção dos homens à Rainha é descrita como minuciosamente construída por ela a partir de seus conhecimentos sobre as obras de Petrarca e Maquiavel.



            Finalmente, pode-se afirmar que a iconicidade do modelo de governo Elizabetano reverbera por, em termos petrarquistas, utilizar-se da linguagem do amor. As relações políticas, bem como o trato do povo, são amplamente descritos nos poemas dedicados à Rainha - ambos evidenciados no poema de Sir John Davie, “Of her Justice” (FORSTER, 1969: 139). Assim, o petrarquismo Elizabetano destacou-se não só por projetar uma imagem de Rainha que apetecia e preenchia as expectativas demandadas à época, mas também por assumir o papel idealizado por Petrarca.

Referência Bibliográfica

FORSTER, Leonard. The Political Petrarchism of the Virgin Queen. The Icy Fire.
Five Studies in European Petrarchism. Cambridge: Cambridge University Press, 1969.

Petrarca:Sonetos em Análise - Parte II


Continuando daqui...

Petrarca demonstra imensa musicalidade em seus sonetos. Investindo em rimas do tipo A-B-A C-D-C, o autor transborda de ritmo e perfeição: vê-se extremo emprego de técnica e uma idealização exagerada da mulher amada. Assim como no poema analisado anteriormente, o soneto de número 13 trata de um tema parecido.


ITALIAN
ENGLISH
Quando fra l'altre donne ad ora ad ora
Amor vien nel bel viso di costei,
quanto ciascuna è men bella di lei
tanto cresce 'l desio che m'innamora.

I' benedico il loco e 'l tempo et l'ora
che sí alto miraron gli occhi mei,
et dico: Anima, assai ringratiar dêi
che fosti a tanto honor degnata allora.

Da lei ti vèn l'amoroso pensero,
che mentre 'l segui al sommo ben t'invia,
pocho prezando quel ch'ogni huom desia;

da lei vien l'animosa leggiadria
ch'al ciel ti scorge per destro sentero,
sí ch'i' vo già de la speranza altero.
When from hour to hour among the other ladies
Love appears in her beautiful face,
by as much as their beauty is less than hers
by so much the desire that en-amours me grows.

I bless the place, the time, and the hour
in which my eyes gazed to such a height,
and I say: My spirit, give thanks enough
that you were then found worthy of such honour.

From her to you comes loving thought,
that leads to highest good, while you pursue it,
counting as little what all men desire:

from her comes that spirit full of grace
that shows you heaven by the true way':
so that in hope I fly, already, to the heights.

Cá estamos em Petrarca, na fronteira entre o amor cortês e o amor romântico (ver em http://litrenascpetrarquismo.blogspot.com.br/2016/12/a-maneira-petrarquista.html), , para o surgimento da ideia de um amor à primeira vista e inalcançável, inconsumavel. Neste, o soneto de número 13, é importante notar como o poeta pinta a figura de sua amante. E me refiro a pintar como no sentido mais arte renascentista da palavra: uma Vênus de Milo intocada, perfeita, de traços proporcionais, moldada a mão por um artista. A admiração do eu-lírico por sua signora é tremenda, e que Deus abençoe “the place, the time, the hour” quando este pôs seus olhos nela. É engraçado pensar que, devido à falta de descrição palpável da moça além de que ela é estonteante (seria morena? alta?), toda e qualquer pessoa pode projetar uma face, um modelo nos linhas do poema. 

Assim como no soneto anterior, vê-se Petrarca derretido de amores por alguém intocável, em uma altura para a qual ele apenas espera poder voar (in hope I fly). Traçando um paralelo entre ambos os sonetos, é possível ver que o eu-lírico constrói uma figura relacionada ao sentido da visão, da beleza física, tanto como um blind man, cego pela amada no primeiro soneto como o homem que agradece aos céus pela simples oportunidade de poder olhar para ela no segundo; está aí o sujeito do amor que não é marcado, arranjado pelos pais: é o amor que surge da beleza da amada.

Nas palavras do próprio Petrarca, está aqui what all man desire: o amor, a amada, a beleza única dentre todas. Como pôde ser constatado em ambos os sonetos analisados, Petrarca era um poeta que idealizava, anjeificava (vamos de neologismo, sim?) as mulheres, num soneto, uma forma de rimar perfeitamente calculada na qual cada sílaba conta - literalmente. 



 [2] PETRARCA, Francesco. Canzoniere. Tradução de A.S.Kline. Disponível em: <http://petrarch.petersadlon.com/canzoniere.html?poem=13>

Petrarca: Sonetos em análise

Resultado de imagem para petrarcaAo tratar da produção poética da época Renascentista, Francesco Petrarca surge como um exponencial ao criar o que hoje é chamada “maneira petrarquista”.  Sua obra se trata de um conjunto extenso de composições poéticas - principalmente sonetos - elaboradas durante mais de trinta anos. Além disso, sua composição reflete um processo amoroso inspirado por uma mulher - Laura - cuja existência real não é comprovada. A morte da dama serve de linha divisória a duas seções em que os poemas são agrupados: 'In vita di madonna Laura' e 'In morte di madonna Laura’.
O amor de Petrarca traz uma idealização da amada - que transcende e transborda tudo que existe entre céu e terra. A mulher. Há uma extrema introspecção do eu poético no que tange a experiência amorosa, ao mesmo tempo que, os efeitos dessa experiência amorosa podem ser compartidos por todos.
No Soneto 18, Quand'io son tutto vòlto in quella parte, [1] a amada é retratada como portadora de uma luz  e uma beleza celestial:

Muitas das palavras utilizadas em poemas petrarquianos são utilizadas de forma que parecem reforçar a experiência amorosa. Além da menção da palavra luz (‘luce’) diversas vezes ao longo do poema, é possível notar a repetição palavras nas rimas (‘parte’, ‘luce’, ‘morte’, ‘sòle’, ‘desio’) - estas palavras fazem parte dos temas centrais do poema: a visão reluzente da amada, a solidão, a morte e o desejo.
No poema, a beleza reluzente parece apenas uma memória de uma beleza desaparecida, que não vem para iluminar o caminho do poeta, nem o confortar da morte. Na verdade, a morte aqui é o evento cruel que serve como escape para o desejo de uma mulher que se foi. Laura está, de certa forma, escondida por trás das características suaves, as cores brilhantes e, graças a um corpo harmonioso, uma espécie de linguagem de autoconhecimento. No entanto, o caráter reluzente de Laura parece estar acompanhado por uma espécie de sentimento de culpa que talvez decorra da incapacidade do poeta entrar em um relacionamento sereno com o mundo.


 [1] PETARCA, Francesco. Canzoniere. Tradução de A.S.Kline. Disponível em: <http://petrarch.petersadlon.com/canzoniere.html?poem=18>

Thomas Wyatt: Sonetos em análise.


Sir. Thomas Wyatt
Thomas Wyatt (1503-1542), pioneiro e introdutor do soneto Petrarquiano na poesia inglesa (modelo em voga à época),  escreveu muitos sonetos, versos e outras obras poéticas publicadas  apenas depois de sua morte prematura por febre.
Em 1557, noventa e seis de suas canções apareceram na primeira antologia impressa da poesia inglesa, como "Songs and Sonnetts in Tottel's Miscellany" - antes desta publicação, sua obra circulara apenas na forma de manuscritos anônimos. Outros de seus trabalhos foram gradualmente descobertos entre seus papéis e compartilhadas com o público.
Admiradores da obra de Wyatt avaliam seu trabalho como versátil, de profunda riqueza e variedade de gênero (como as líricas e sátiras sardônicas) e temas, sendo alguns deles a mudança de tratamento e/ou a traição como tratamento imerecido a um amante, servo ou, até mesmo, um rei. A seguir, encontram-se breves análises de dois dos sonetos de Sir. Thomas Wyatt.



Whoso list to hunt
(THE LOVER DESPAIRING TO ATTAIN UNTO) 

Who so list to hounte, I know where is an hynde,
But as for me, helas, I may no more.
The vayne travaill hath weried me so sore,
I ame of theim that farthest cometh behinde.
Yet may I by no meanes my weried mynde
Drawe from the Diere: but as she fleeth afore
Faynting I folowe. I leve of therefore,
Sithens in a nett I seke to hold the wynde.
Who list her hount, I put him owte of dowbte,
As well as I may spend his tyme in vain.
And graven with Diamondes in letters plain
There is written her faier neck rounde abowte:
‘Noli me tangere for Cesars I ame,
And wylde for to hold though I seme tame’.

Whoso List to Hunt é um famoso soneto Inglês escrito por Sir Thomas Wyatt (1503-1542) no século 16 e foi publicado pela primeira vez em uma antologia de poemas intitulada Songs and Sonnettes Written by the Ryght Honorable Lord Henry Howard, late Earle of Surrey, and others. A antologia foi publicada em Londres por Richard Tottel e é conhecida como Tottel’s Miscellany. Wyatt foi poeta da corte de Henrique VIII e conhecia Ana Bolena, a segunda esposa do rei. Acredita-se que o poema em questão, que tem um título alternativo “The Lover Despairing to Attain Unto His Lady’s Grace Relinquisheth the Pursuit”, foi escrito para Ana Bolena que se casou com o rei Henrique VIII apenas para ser decapitada a seu comando quando ela não conseguiu produzir um herdeiro do sexo masculino.
O soneto Petrarquiano tem tipicamente 14 linhas. As 8 primeiras linhas introduz o problema ou questão para contemplação e as 6 linhas restantes oferecem uma resolução ou uma opinião. Em Whoso List to Hunt, Wyatt usa pentâmetro iâmbico para estabelecer o ritmo das palavras em cada verso, sendo assim, há cinco pares de sílabas, cada uma tendo a segunda sílaba como a mais forte. Pentâmetro iâmbico, apesar de ser um ritmo regular, tem o padrão próximo ao de uma fala comum e pode ser visto como uma tentativa não só de imitar, mas também de elevar o som das conversas do dia-a-dia.

O soneto tem tema o amor romântico e usa a metáfora de um caçador que persegue um cervo. O cervo (que é fêmea) é jovem e difícil que pegar; já o caçador é mais velho, mais lento e mais cansado da perseguição e está ficando para trás de outros caçadores que são mais jovens e mais energéticos. Porém, a caçada é inútil, pois o rei reivindicou o cervo como propriedade real dele, a ponto de colocar uma gargantilha de diamante no pescoço dela com as palavras “‘Noli me tangere for Cesars I ame, / And wylde for to hold though I seme tame’” (“Touch me not, for I belong to Caesar, and though I seem tame, I am too wild to hold”).

My heart I gave thee
('THE LOVER FORSAKETH HIS UNKIND LOVE')

My heart I gave thee, not to do it pain;
But to preserve, it was to thee taken.
I served thee, not to be forsaken,
But that I should be rewarded again.
I was content thy servant to remain
But not to be paid under this fashion.
Now since in thee is none other reason,
Displease thee not if that I do refrain,
Unsatiate of my woe and thy desire,
Assured by craft to excuse thy fault.
But since it please thee to feign a default,
Farewell, I say, parting from the fire:
For he that believeth bearing in hand,
Plougheth in water and soweth in the sand.

De sentenças curtas e diretas,  soneto Petrarquiano "My Heart I gave thee", de Thomas Wyatt, tem por temática a decepção; tratando - possivelmente - de dois temas: a decepção (ou engano) por parte de um (a) amante infiel; e/ou da relação entre um cortesão e seu rei. Leituras deste poema afirmam que a interpretação do mesmo como representação da relação cortesão-rei advém da própria experiência de Sir. Thomas Wyatt na corte do rei Henrique VIII, desde a sua infância
Na primeira parte do soneto, o sexteto, o eu-lírico começa por explicitar ter dado seu coração para que fosse preservado e não machucado ou renegado ("My heart I gave thee, not to do it pain;/
But to preserve, it was to thee taken"). Por isso, ele permanece subserviente – e continuaria por permanecer desta forma (e feliz), caso não tivesse sido tratado de maneira pobre, mas, sim, tratado como seu coração desejava ("I was content thy servant to remain/But not to be paid under this fashion").
Logo depois, no octeto, continuar por lamentar o tratamento recebido, desta vez, jurando retirar do objeto de sua devoção seus sentimentos e paixão. Para ele, a responsabilidade pela retirada de tais sentimentos recai sobre os ombros do ser a quem estes são devotados – outrora adorado (a) e de devoção irrevogável pelo narrador –; sendo este ser (ou o público) difícil de ser agradado – tal como “arar as águas ou plantar na areia” – (“Plougheth in water and soweth in the sand”). Finalmente, o soneto acaba por retratar, de maneira forte e sintética, os sentimentos de um eu-lírico à respeito de um wronged lover.

Em tempo, o site "Luminarium" disponibiliza a leitura (em formato de áudio, inclusive para download) de diversos sonetos de Sir Thomas Wyatt. Os poemas aqui, brevemente, analisados se encontram disponíveis aqui (Whoso list to hunt) e aqui (My heart I gave thee).



Referências:
"Thomas Wyatt". Disponível em: http://www.gradesaver.com/author/thomas-wyatt, http://www.oxfordbibliographies.com/view/document/obo-9780199846719/obo-9780199846719-0041.xml e https://www.enotes.com/topics/sir-thomas-wyatt/critical-essays/wyatt-sir-thomas-ca Acesso em: 20 de Dezembro de 2016.
"Sir Thomas Wyatt". Disponível em: http://www.luminarium.org/renlit/wyattbib.htm Acesso em: 20 de Dezembro de 2016.
WYATT, Thomas. My Hear I Gave Thee. Disponível em: https://loiselden.com/2015/08/18/my-heart-i-gave-thee/ Acesso em: 20 de Dezembro de 2016.
_______. "Whoso list to hunt". Disponível em: https://thomaswyatt.wordpress.com/2009/11/08/whoso-list-to-hunt/. Acesso em 20 de Dezembro de 2016.
Material adquirido nas aulas de Literatura do Renascimento (UFRJ). 



segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

O amor renascentista e sua representação na pintura

O amor renascentista [1] e sua representação na pintura

Quando levamos em conta a produção de arte no que tange a pintura no período Renascentista, é perceptível o que Luhmann chama de ‘amor como meio de comunicação’[2]. Além de, é claro, continuarmos a ver a construção do amor em relação ao que é percebido como construção social do amor atribuído ao século 16, principalmente o que se chama de ‘a maneira petrarquista’ na literatura.
            Para Luhmann, por conta do amor como meio de comunicação, instaurado no contexto renascentista, fazia com que os cidadãos da época se tornassem cientes do que era o amor como paixão, e que, esse amor e seu achado, podia ser parte ou não do destino de alguém [3]. A ideia de que algo é parte ou não do destino de alguém, e desse destino não há escapatória, já fazia parte do sistema de crenças dos pensadores clássicos, e, como sabido, diversos aspectos culturais dos Gregos e Latinos é retomado durante o Renascimento, mesmo que com novos ares.
            Dentre diversos exemplos, podemos notar como o amor não correspondido era exaltado [4]. Como na obra apresentada abaixo, Vênus e o Tocador de Alaúde, de autoria de Ticiano Vecellio, datada de 1565-70 [5].

Vênus e o Tocador de Alaúde. Ticiano Vecellio, 1565-70

            É possível, através da análise do quadro, termos a percepção de Vênus, que está sendo coroada pelo Cupido, ignora o Tocador de Alaúde, mesmo esse direcionando seus atos a ela. Porém, tal representação pode vir a simbolizar o que Luhmann descreve como assimetria dentro da relação amorosa [6]. Vênus, até esse ponto, é exaltada, experienciando [7] o amor (o que pode ser representado pela figura do Cupido) ao passo que o Tocador de Alaúde atua [8] o amor em si.
            Decerto, o exposto acima é passível de ser notado no quadro abaixo, Vênus e Adônis, pintado por Giorgio Ghisi, baseado em Teodoro Ghisi, datado de 1570 [9].

Vênus e Adônis. Giorgio Ghisi (baseado em Teodoro Ghisi), 1570 

            O quadro, novamente, nos oferece a visão de quem atua, Vênus, e de quem experiencia, Adônis. Porém, nesse momento notamos as posições tomadas pelos Cupidos, no qual um, mais a parte inferior da tela agride um animal, e outro, na parte mais superior, desvela a floresta. A narrativa de Ovídio sobre a lenda de Vênus e Ovídio conta que, ao ser atingida por uma flecha do Cupido, Vênus se apaixona por Adônis e o alerta para não sair à caça. Adônis, porém, ignora o conselho de Vênus e acaba sendo morto por um javali. Podemos então relacionar esse simbolismo imagético ao que Luhmann diz em relação à comunicação explicita e relações amorosas: Essas podem ser prejudicadas por aquelas [10].
            Por fim, na obra apresentada a seguir, pintada por Sandro Botticelli, nomeada Vênus e Marte, datada de 1485, é possível notar a não presença do controle social, mencionada por Luhmann [11].

Vênus e Marte. Sandro Botticelli, 1485.

            A presença dos Faunos, ao fundo dos dois amantes, brincando com as armas de Marte, faz com tenhamos a percepção de que o rigor do controle social já não está presente onde o casal se encontra. É possível também especular que, como os Faunos brincam com as armas do Deus da Guerra, os dois amantes já não estão mais percebendo o que os está cercando, estando apenas concentrados em si mesmos.
            Olhando para todos os quadros, principalmente os dois primeiros, podemos perceber que a noção de amor que perpassa o Renascimento incide igualmente sobre a pintura e sobre a literatura. Aquilo que é dito como característico da maneira petrarquista, a paradoxalidade do amor petrarquista é percebido na representação do amor nos quadros apresentados. É contundente a diferença entre os dois amantes que, além de um atuar e outro experienciar, possuem diferenças físicas notáveis, como a presença ou não de roupas, a posição em que estão posicionados em relação ao observador da obra, assim como suas posturas corporais.

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[1] Referência Básica: LUHMANN, Niklas. Love as passion: The codification of intimacy. Harvard University Press, 1986.
[2] LUHMANN, p. 20
[3] LUHMANN, p. 20
[4] LUHMANN, p. 20
[5] VECELLIO, Ticiano. Vênus e o Tocador de Alaúde. Disponível em: http://www.metmuseum.org/art/collection/search/437827
[6] LUHMANN, p. 22
[7] LUHMANN, p. 22
[8] LUHMANN, p. 23
[9] GHISI, Giorgio. Vênus e Adônis. Disponível em: http://www.metmuseum.org/toah/works-of-art/53.522.28/
[10] LUHMANN, p. 25
[11] BOTTICELLI, Sandro. Vênus e Marte. Disponível em: https://www.nationalgallery.org.uk/paintings/sandro-botticelli-venus-and-mars

A maneira petrarquista

A maneira petrarquista[1]

“Petrarca forjou, para a posteridade, um idioma poético enormemente flexível. (...) O drama e mesmo o romance mostram que o idioma petrarquista tornou-se a linguagem obrigatória do amor.”[2]

“Críticos frequentemente se referem a um ‘sistema petrarquista’. Não se pode dizer se os petrarquistas eram conscientes da existência de algo dessa natureza. A convenção era coerente e amplamente difundida, inestimável, parte do ar que eles respiravam, e muitos deles provavelmente pensavam muito pouco sobre o assunto.”[3]

Francesco Petrarca (1304-1374), poeta
e intelectual italiano
          As convenções originadas a partir da lírica amorosa de Petrarca formam, na visão de Leonard Forster, “o segundo grande sistema internacional de amor convencional”[4], situado no recorte temporal entre o amor cortês e o amor romântico. A galopante influência de Petrarca sobre a literatura ocidental diz respeito ao surgimento de todo um repertório particular de símbolos, representações, metáforas, idealizações, oposições, tonalidades relacionadas ao amor, à experiência do ser amante, e à figura da mulher amada. A compreensão de como o amor é visto no Renascimento é, portanto, inseparável de um estudo aprofundado da produção do poeta e intelectual italiano.
            O que marca, no entanto, a dicção amorosa petrarquista? Que timbre singulariza a sua voz?
Ora, a poesia amorosa de Petrarca se estrutura a partir de um reconhecimento da natureza paradoxalmente infernal, infernalmente paradoxal, da experiência do amor. A criatividade de Petrarca se espraia sobre “o equilíbrio delicado entre opostos, precário e sempre ameaçado”[5]. A sua expressão poética se debruça sobre o que de mais antitético pode haver na experiência da entrega amorosa: o convívio íntimo entre prazer e dor, o contraste brutal entre o fogo que pulsa no amante e o olhar gélido da amada, os rápidos percursos da alegria mais plena à melancolia mais profunda. “Se boa por que tem ação mortal? / Se má por que é tão doce o seu tormento?” – indaga Petrarca no conhecido Soneto XXII, reconhecendo em seguida o absoluto abandono de si de que o amor o tornou vítima: “A tão contrário vento em frágil barca, / Eu vou para o alto mar e sem governo”[6].
Ainda que seu objeto de indagação sejam as oscilações paradoxais do amor – a forma como este, a um só tempo, injeta uma vida extraordinária e uma tristeza visceral naquele que ama, ao ponto em que morrer de amor parece um destino possível –, a linguagem de Petrarca lança mão de conceitos simples e imagens concretas. Embora seus poemas “sejam o produto de emoções profundas, a sua formulação é intelectual, e atingida em termos simples”.[7] Materializam-se oposições como calor/frio, chama/gelo, guerra/paz. A amada é tematizada como o sol do universo, ou como a chama que atrai a mariposa (o amante). A simplicidade das metáforas de Petrarca faz com que tais imagens possam ser exportadas para diferentes contextos, e posteriormente integradas a uma convenção da qual a poesia amorosa petrarquista constitui a fonte. É em função da flexibilidade desse vocabulário que Leonard Forster argumenta que o repertório petrarquista se converteu, do Renascimento em diante, na linguagem obrigatória do amor – conforme uma das epígrafes deste texto.
Soneto 18: Petrarca remete-se às
 belezas celestiais de sua amada
A poesia amorosa de Petrarca gravita em torno das experiências de um eu apenas moderadamente individualizado: seus poemas se estruturam em primeira pessoa, mas a experiência do amor não é singularizada ao ponto de não poder ser compartilhada por mais nenhum ser humano. Petrarca interessa-se imensamente pelos efeitos do amor sobre aquele que ama, e, na medida em que o faz, abre a possibilidade de que a sua poesia se universalize.
O eu petrarquista é laudatório: fascina-o a forma como Laura, sobre quem todo esse amor de labaredas se deposita, encarna tanto a perfeição física quanto a espiritual. A mulher amada transcende tudo que pode haver sobre os céus e a terra, chegando mesmo ao ponto de comandar as forças da natureza. Petrarca recorre a um amplo conjunto de hipérboles para dar conta de tal superioridade – todas, é claro, insuficientes.
Além disso, porque o poder e a beleza da mulher amada são ilimitados, o poeta dedica grande parte dos seus esforços ao elogio de tudo que lhe diz respeito – seus objetos, suas conquistas, seus atributos físicos – ou mesmo daquilo que a ela remete indiretamente – o local em que os amantes se encontraram pela primeira vez ou a cidade em que a dama vive, por exemplo. É no interior desse movimento que a poesia petrarquista codifica, inclusive, um modelo específico de beleza feminina: pele alva, olhos negros, cabelos dourados, dentes brancos e perfeitos. No mais, recorre-se a comparações mitológicas e a descrições metafóricas, em esforços sucessivos de encapsulamento de uma beleza verdadeiramente divina.
 Não obstante o seu interesse pela exterioridade do amor, é aos meandros internos da experiência amorosa que Petrarca dedica a maior parte da sua atenção. Ao poeta são caras “a interpenetração de prazer e dor, e a satisfação que poderia ser obtida do equilíbrio difícil desses dois opostos”[8]. Visto como um sweet enemy, como uma life-in-death, o amor é comparado à guerra; é apreendido como uma força descomunal cujo único efeito possível sobre o sujeito é a renúncia completa de qualquer senso de individualidade. Prova disso é a forma como as emoções do eu-petrarquista oscilam diante do comportamento da amada: se ela se comporta com graça e ternura, o amante se eleva, se regozija; se ela o trata com desdém, a ele resta um tormento maior do que o mundo. De fato, é comum que a poesia amorosa de convenção petrarquista enfatize a crueldade da dama – que, naturalmente, não foi tomada pelas forças do amor, e vê com desprezo os paroxismos em que seu amante se contorce.
            O amor de Petrarca é um amor que exige padecimento físico: diante da distância da amada e de suas sucessivas demonstrações de indiferença, “o amante emagrece, não consegue dormir, tem a pele pálida como a de um cadáver; suas lágrimas fazem com que o nível dos rios suba”[9]. Afligido por um quadro tão massacrante, o sujeito petrarquista contempla o suicídio, mas vê-se diante de uma barreira religiosa: segundo a visão da Igreja, aqueles que se suicidam arderão para sempre no fogo do inferno. Qualquer possibilidade de fuga às vicissitudes do amor se elude, e o poeta se converte num morto-vivo ambulante, perfeitamente roubado de sua individualidade pelo sentimento que dele se apossa e que sobre ele se impõe, minimizando sua independência e sua constituição enquanto sujeito.
              No clímax da poesia de Petrarca, os opostos se fundem. Conforme argumenta Forster:

Originalmente, os conceitos de vida e morte eram colocados lado a lado de forma mais ou menos concreta; gradativamente, eles se tornam relacionados, e adentram uma espécie de tensão em que se tornam inseparáveis, intercambiáveis, e finalmente quase idênticos. O mesmo percurso se verifica em outros pares antitéticos: calor-frio, tristeza-alegria, doçura-amargura, dia-noite, medo-esperança, libertação-servidão etc. [10]
          
          A consolidação do “sistema petrarquista” é um marco fundamental do Renascimento em termos de como o amor era tematizado artística e intelectualmente. A compreensão da poesia paradoxal e intensa, ainda que formalmente simples, de Petrarca, é decisiva para um entendimento mais amplo desse período e dessa visão de amor. A dicção de Petrarca se alastrou consideravelmente por dentro e por fora da Itália. Conforme Forster, “a atitude da época era a favor da imitação, então poetas em vários países imitaram o que era imitável – a dicção estereotípica, mas infinitamente flexível do petrarquismo”[11].          




[1] Referência básica: FORSTER, Leonard. The Icy Fire. Five Studies in European Petrarchism. Cambridge: Cambridge University Press, 1969.
[2] FORSTER, p. 8.
[3] FORSTER, p. 20.
[4] FORSTER, p. 2.
[5] FORSTER, p. 3.
[6] PETARCA, Francesco. Cancioneiro. Rio de Janeiro: Ediouro. Tradução de Jamil Almansur Haddad. Disponível em: <http://www.blocosonline.com.br/literatura/poesia/pidp/pidp010713.htm>
[7] FORSTER, p. 7.
[8] FORSTER, p. 13.
[9] FORSTER, pp. 15-16.
[10] FORSTER, p. 20.
[11] FORSTER, p. 23.